domingo, 5 de agosto de 2007

SOCIEDADE DECAPITADA

Em uma das ruas do Rio - como tantas ruas do Rio - um menino de pés descalços - como tantos meninos de pés descalços – me chamou de tia e me pediu um real. “eu não sou bandido não”, insistiu ele diante das minhas passadas largas, emparelhando seus passos com os meus sem desistir do que queria: apenas um real.

Seu nome é Jonathan, ele tem treze anos e tem um único sapato que guarda pra ir pra escola. Um dia frio e chuvoso, Jonathan anda pelas ruas mal agasalhado, me conta que seu chinelo arrebentou a tira e eu que ele não pode gastar seus sapatos, na escola não posso entrar descalço. Jonathan mora no Morro Dona Marta e quase me convence de que a vida é bela com seu sorriso ingênuo e sua cara de moleque. Eu passaria horas ouvindo suas histórias, seu tom de pedinte tornou ares de narrador e nossas passadas assumiram o mesmo ritmo confidente. É uma pena, digo a ele, mas preciso ir.

Pensei em comprar um chinelo pra Jonathan, mas já era tarde, não haviam lojas abertas naquele pedaço. Não posso dar meu dinheiro do taxi pra ele, vou voltar tarde pra casa. Pensei em dar meu telefone, mas e a coragem de me envolver de verdade? Deixei Jonathan ir embora, com sua moeda reluzente estampada na palma da mão e um monte de projetos na cabeça: vou juntar mais nove dessas e comprar um chinelo pra mim, dizia ele enquanto se afastava.

“Pensamentos e visões de um decapitado” era um texto de Antoine Wiertz citado por Benjamim, que não me saía da cabeça enquanto pensava em Jonathan tentando se mover naquela noite chuvosa, cobrindo as feridas abertas em seu corpo pequeno, frágil e mal alimentado. “O que sofre quem é executado assim não pode ser reproduzido pela linguagem humana”, diz o autor enquanto narra. “Chega um momento em que o executado pensa que está estendendo as mãos crispadas, trêmulas em direção à cabeça. É o instinto que nos faz tapar com a mão a ferida aberta. Isso se dá com o intuito, com o horroroso intuito de recolocar a cabeça em cima do tronco, para guardar mais um pouco de sangue, mais um pouco de vida...”

Quantas mãos ainda se estenderão frente a seus corpos decapitados, iludidas por algum resto de sangue que ainda corre pelas veias de uma cidade atormentada? “Ainda não é a morte”, prossegue a narrativa do decapitado “a cabeça continua pensando e sofrendo”. Talvez a morte em vida que os versos de João Cabral revelam, seja essa morte que nos atravessa como o fio da navalha, produzindo o corte fatal de uma sociedade partida, que inutilmente estende a mão para o que ainda pulsa à sua volta.

“Já está morto e continuará a sofrer assim? Talvez por toda a eternidade?” é a pergunta que me faço acerca de Jonathan e de todas as crianças descalças que pelas ruas perambulam, revelando a face mais cruel dessa navalha. Continuo meu percurso de sempre, quase acostumada ao abandono que me cerca e do qual também faço parte.