segunda-feira, 30 de junho de 2008

A Lapa e a polícia

Por dois dias seguidos visitei a Lapa e em ambos fiquei estarrecida com o que vi ao anoitecer de cada um dos dias. Sabemos que a ação diária da polícia na região é intensa, e sofre mudanças com objetivos específicos. Acabamos nos acostumando com os camburões e as sirenes estacionadas em lugares estratégicos, fazendo parte da habitual paisagem, com sua suposta harmonia e convívio.

Este fim de semana, no entanto, foi diferente. Algumas ações dirigidas apontavam para novas medidas de segurança na região, com as quais passamos a conviver sem aviso. No sábado, conversando distraída com amigos na porta do Circo Voador, estranhei barracas sendo arrastadas por senhoras, velhos e trabalhadores aborrecidos, que se dirigiam amontoadas para um canto debaixo dos arcos.

Sob a escolta de um policial, eles se viam constrangidos a abandonar a rotina de vender livremente suas mercadorias, passando a ser tratados como fora da lei. Estavam fazendo algo proibido. Talvez essa noite alguém não consiga levar pra casa o pão, o leite, ou qualquer outra coisa que o dinheiro compre com trabalho in-digno. Mesmo assim, enquanto todos não foram retirados de em volta da praça, o policial não deu por encerrado o seu serviço. É a lei, pensei, suspirando fundo na minha impotência que se deu por vencida. Não há nada a fazer.

No domingo a cena não apenas se repetia, mudava de lugar e de vítima. Parei numa barraca pra comer um churrasquinho e tomar uma cerveja com um amigo. Enquanto aguardava na fila, nos sentamos numa cadeira de frente pra rua e começamos a observar o que acontecia. A rua estava repleta de mendigos, misturada com moradores locais e gente de fora, que às dez horas da noite ainda circulava nos bares e barraquinhas. De vez em quando era possível encontrar alguém conhecido ou ser abordado por um faminto.

De costas para os arcos, ouvimos o burburinho vindo de trás, que foi se estendendo na nossa direção e seguia, parecendo infinito. Aos poucos nos demos conta de uma nova e inesperada ação da polícia, que expulsava um grupo grande de pessoas de seus alojamentos de improviso. Fiquei assustada ao ver tantas crianças descalças correndo àquela hora da noite, mães adolescentes com bebês no colo, gritos que cresciam enquanto a confusão se estendia. Era a lei, mais uma vez se cumprindo.

A lei que provavelmente quer manter limpa a cidade para o dia seguinte. E à qual nos submetemos, ajudando a esconder pra debaixo do tapete a enorme ferida social, alastrada e sangrenta. Insuportavelmente exposta à nossa vista. A poucos metros um policial chutava um mendigo, enquanto lhe arrancava o cobertor e lhe mandava pra lugar nenhum. Somente cumpria a lei, com seus modos decididos.

A ferida que cresce purulenta em algum beco da cidade, por vezes estoura a olhos nus, rompendo com a ordem estabelecida. Não é preciso ser vítima de uma bala perdida pra ser atravessado no corpo e no cérebro pela existência desse estranho cotidiano, que mata pobres, pretos, velhos, crianças e meretrizes. Mantendo a céu aberto, campos de concentração e práticas genocidas.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

MEU CASO DE AMOR COM O TEATRO

Ontem fui ao teatro depois de muito tempo “entocada”. Na cidade do Rio de Janeiro ir ao teatro é uma aventura sempre perigosa. Mesmo assim não desisto e guardo meu grau de exigência pra alguma surpresa inesperada. Em alguns raros momentos o teatro carioca me surpreendeu de fato.

Isso aconteceu em datas memoráveis. Mesmo que eu inveje os paulistas com o seu SESC da Consolação, mesmo que eu fareje o teatro de Londrina com boas e surpreendentes aparições, mesmo que eu me surpreenda com o que acontece em Brasília, Goiás e outros lugares inimagináveis, o teatro do Rio de Janeiro continua sendo a velha praga.

Não tenho formação teatral, aprendi no tato. Fui batizada e me tornei amante um belo dia, com o Grupo Galpão e sua mais bela apresentação de todos os tempos: Romeu e Julieta. Depois acompanhei Gabriel Vilela em inúmeras montagens. Era um tempo de festa, pelo menos de seis em seis meses um espetáculo que emocionava. Grandes e talentosos atores sendo descobertos, outros conseguindo espaço digno para a sua arte.

Gabriel saiu de cena e depois dele ficou um vácuo. O grupo Armazém apareceu e começou a abrir novos espaços. Fundição Progresso abrigou várias montagens, juntamente com o SESC de Copacabana, CCBB, Planetário. Carlos Gomes, João Caetano. O teatro estava de volta, mas ainda não era nosso, era de fora.

Conheci Moacyr Chaves em “Bugiaria – o processo de João Cointra” e fiquei encantada. De lá pra cá acompanhei alguns de seus espetáculos, na esperança de viver na minha cidade, um novo tempo de boas montagens. Desisti no caminho, Moacyr errou a mão em vários lugares, não vou citar, sou uma leiga apaixonada.

Ontem decidi dar-lhe uma outra chance e fui assistir “A invenção de Morel” de Bioy Casares. Para minha surpresa, os ingressos eram de sobra, o teatro estava vazio e isto me deixou preocupada. Deixei de assistir a Companhia Peter Brook, mas não havia de ser nada. Uma bela teoria da conspiração acerca do comentário de Bárbara Heliodora me deixaria calma, em condições de visitar a exposição da China e não pensar mais no caso.

O folder, muito bonito, como quase tudo que o CCBB realiza, era uma inspiração à parte. Entrei meia hora antes e consegui ler o texto de Vera Novello, que me adoçou a boca e me deu coragem. Trechos de entrevistas com Bioy Casares, bem como um pequeno resumo de sua trajetória em destaque, davam alguma noção do que nos esperava. O corpo de atores, pra quem freqüenta teatro, dispensa comentários. Fiquei novamente animada.

O esforço descomunal dos atores pra dar ao público a chance de assistir a um bom espetáculo, não passou da primeira página. Mesmo esbanjando talento em cena, havia uma postura excessivamente exasperada. Em determinados momentos eu não sabia se assistia a vários monólogos ou se me contentava com um texto despedaçado. O exagero na maquiagem e nos figurinos diante de tantos apelos cênicos, tornava tudo performático. Pra completar um cenário azul espelhado, com grades dos lados, pareciam querer dizer alguma coisa, mas o texto não era tão óbvio.

Os atores voltam em cena para receber os aplausos. No rosto de cada um você percebe o cansaço e a tristeza com a falta de público, com a falta de entusiasmo. Voltei pra casa abatida e fui ouvir Ronda na voz de Jamelão. Tentarei numa outra data.

domingo, 15 de junho de 2008

ADEUS A JAMELÃO

Os discos eram de vinil, em várias rotações, pesavam, quebravam e papai ficava zangado com qualquer arranhão. Eu passava as tardes de banho tomado na sala da antiga casa, ouvindo e aprendendo velhas e populares canções: do brega ao chique, cantava de cor qualquer modinha, especialmente o refrão. Da morte de Pixinguinha, da tristeza de papai e dos discos conservados em homenagem àquele que compôs a mais ouvida das melodias do seu tempo, guardo as notas antigas misturadas às tardes raras, iluminadas pela poesia que escorria dos porões.

As músicas vinham do morro e isto a gente aprendia de travessão. O morro, lugar de vagabundo, de malandro negro safado, era assim que se dizia naquele tempo em que as palavras eram curtas e o medo tomava conta das mentes empobrecidas de informação. Enquanto a poesia brotava e obrigava as casas a abrirem suas portas e janelas praquela euforia de vozes e instrumentos, eu ia gravando os rostos, os nomes... e entre um deles estava Jamelão. Nome da arvore da infância, que a gente subia pra ver a paisagem do alto e contemplar a sujeira do chão. Ou balançar no balanço pendurado em um de seus galhos fortes. Ou simplesmente desfrutar de sua sombra e apreciar seu fruto estranho, cuja arrebentação se misturava ao colorido da terra, numa estranha e permanente visão.

Jamelão, um negro do morro, morre aos 95 anos e eu fui dar o último adeus à minha memória, escondida em tantas vozes e cores de antigamente. Pela primeira vez visitei uma favela, comi sardinha frita trazida do alto, cerveja Skol de garrafa a 2,50, música pra todos os gostos, gente passeando na rua, criança fazendo aniversário, bolo no meio da praça, barulho de tiro. Não liga não, e normal, aqui você se acostuma. Fica tranqüila, dizia o meu anfitrião.

A quadra da Mangueira estava repleta de carros do lado de fora, na porta os caminhões e muitos jornalistas de plantão. Gente dando entrevista, a viúva recepcionando os convidados, o neto elegantemente vestido ao lado do caixão. Orgulho de avô, pensei, fica guardado como uma fotografia de recordação. Um velho que de terno azul marinho e blusa rosa por baixo, chapéu de palha com fita rosa, chegou acompanhado da esposa e da filha, olhou o amigo no caixão de depois se sentou em um canto da quadra.

A viúva, com seu mesmo turbante rosa, sua blusa rosa choque e sua calça verde arregalado, recebia os convidados e dava entrevista pra televisão. Seu rosto de traços fortes misturado à uma elegância natural, davam-lhe uma beleza calculada e preenchida com uma vida diferente das demais. As mulheres naquele lugar são iguais às outras, mas bebem muito mais cerveja e andam pelas ruas sozinhas, participam das rodas de discussão. Essa era a fantasia que permeava o meu olhar curioso, cheio de elucubrações.

Meu amigo me perguntava se estava tudo bem e eu achando desnecessária a pergunta, respondia sempre com uma afirmação. Não foi diferente a vida que eu vivi na minha infância, em casas que eram construídas em frente a enormes valões. Não me assusto com as diferenças, com os becos escuros, com modos e aparências distintas. Ser esquisito pode ser o começo da revolução, pensava enquanto lutava contra as esquisitices que me ensinaram durante a vida e que não combinam com a realidade por alguma outra razão.

A razão que explica a desigualdade, o preconceito e a desinformação foi vivida em forma de deboche por Jamelão. Com seu elastiquinho pendurado na mão, reclamando de cachê pra pagar a conta da luz, viveu sua fama de pão duro que tem ojeriza à escravidão. Lamentou repetidas vezes não ser reconhecido e bem pago, como um dos maiores intérpretes da sua época. Sua morte é anunciada hoje em todos os jornais do mundo, enquanto a favela continua fabricando frutas doces, de cor preta e sabor ácido. Eles nascem, crescem e morrem tingindo as calçadas do mundo com suas cores berrantes, suas vozes, suas canções. Nos ensinando que a diferença produz poesia e aproximação, enquanto a desigualdade continua manchando indiscriminadamente o nosso chão.