Numa manhã de terça feira nas ruas de Ipanema, um procedimento de rotina desperta a curiosidade dos transeuntes, que aos poucos se aglomeram em torno de uma cena que se tornou familiar a qualquer morador da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro: a remoção de moradores de rua, executada quase sempre de forma pouco amistosa por policiais da guarda municipal.
Chama a atenção a reação de duas senhoras, completamente histéricas, que incitam a guarda ao recrudescimento, sob a alegação de que a criança ali deitada era um marginal. Elas o reconhecem e garantem ser ele um dos pivetes que as haviam assaltado na semana anterior. A justiça parece cada vez mais fácil de ser executada: uma simples acusação torna uma criança pobre e abandonada alguém indefensável, e isto parece não surpreender mais. Sinto-me humanamente ameaçada com tanta vulnerabilidade.
A criança resiste. Mantém, depois de ter sido levantada aos chutes pelos policiais, a cabeça enterrada no meio das pernas, dentro da camiseta suja e surrada. Tento dialogar com os policiais para entender o que está acontecendo e para onde pretendem levá-lo. Parece que o policial está mais interessado em dialogar com as senhoras e me ignora francamente, enquanto insisto na minha inútil e despropositada abordagem.
Uma última tentativa de reverter a situação fez-se inútil, deixando-me desolada. Coloco-me de cócoras, na altura da criança, e falo-lhe como quem fala a um camarada: ei, o que está acontecendo aqui, você pode me dizer? Estou do seu lado e quero te ajudar. A criança, que não deve ter mais do que dez anos de idade, já não confia mais em ninguém, já não acredita mais em solidariedade. Ignora meus apelos e se mantém muda, de cabeça enterrada.
Me distancio do tumulto e me mantenho alarmada. Minha pergunta nesta manhã de terça-feira é acerca do mundo em que vivo, onde cenas como esta se misturam à paisagem, numa dinâmica perfeitamente adaptada. Uma criança como outra qualquer, demandante de cuidados, vê-se confrontada com um mundo banhado de hostilidade. Sem saída, sem promessa de futuro, sem escola, sem amigos, sem camaradagem, sua figura suja e maltratada se confunde com o lixo que é recolhido nas esquinas da cidade. Marginal, pivete, bandido, a polícia procede a limpeza das ruas, e a vida segue sem grandes novidades.