Fui ao cinema assistir um filme alemão que haviam me recomendado e acabei entrando na porta errada. Para minha surpresa – eu não havia consultado o jornal, descobri na hora – a primeira produção hollywoodiana de Hersog acabara de entrar em cartaz: o sobrevivente. Não havia dúvidas de que valeria à pena mudar de rota.
Os primeiros cinco minutos do filme não parecem dizer nada, além de um inglês de causar estranheza a quem está acostumado com o cineasta e suas produções alemãs clássicas. Rostos moldados por Hollywood, no entanto, se perdem, quando com eles já se quer alguém acostumado. As tomadas de cena que seguem as primeiras falas, suportam um roteiro cuidadosamente recortado, tal como nos ensina a velha magia de quem sabe o que fazer com as imagens.
O tema seria banal e repetitivo, se não fossem os caminhos percorridos, que não deixam falsas pegadas. Um anti-herói ingênuo e íntegro, não se comunica por meio de ideologias consagradas. Seu sonho de ser aviador é simples, brutal, como a realidade que cerca as conseqüências de um ato que não se pretende arrojado. Perdido na selva vietnamita, preso e torturado, ele procura um sorriso, uma saída, uma fuga, uma cobra de alimento, qualquer coisa que lhe faça continuar vivo, até ser milagrosamente resgatado.
Sua chegada em solo seguro é recebida por uma multidão que o consagra como um herói, a velha piada. Ao ser indagado por repórteres acerca do segredo pra se sobreviver, sem saber o que dizer, declara: é preciso encher o que está vazio e esvaziar o que está cheio. Saí do cinema com essas palavras. Depois de tanto esforço pra suportar cenas duras e impactantes, carregadas de um realismo exacerbado, pensei: então esse era o recado! Apenas uma idéia na cabeça de um homem que desejou ficar vivo, com a intensidade de quem acredita no próprio ato.
Resolvi entender o recado e pensar nas coisas que esvaziaria antes que o ano acabasse, e o que encheria pra continuar viva, acreditando em alguma possibilidade. Esta é a função do cinema: nos fazer criar uma outra realidade. Talvez eu não fique nem mais leve nem mais pesada. Mas certamente sobreviverei, e por enquanto isso me basta.
quarta-feira, 26 de dezembro de 2007
terça-feira, 4 de dezembro de 2007
De quem é o caminho?
Vamos desenhar um caminho? me diz a criança no consultório. Um menino de sete anos de idade, vinha acompanhado da mãe e já na entrada do hospital me causou surpresa o modo como andava: sacudia os braços em círculos no ar, como se abrisse caminho no vento pra conseguir passagem. Já fazia algum tempo que ele vinha e a queixa era feita pela mãe: um menino muito agressivo.
Nas primeiras entrevistas, colocava tudo de cabeça pra baixo, chutava, batia. Aos poucos foi dando vida aos carrinhos que iam pra guerra, as mortes, os bandidos. Seu pai morrera com um choque no liquidificador, quando ele ainda estava na barriga da mãe e este era o drama que envolvia aquela família, composta de mãe e filho.
Sim, vamos, respondi depois de colocar duas folhas de papel, lápis e borracha sobre a mesa, sentando-me em seguida. Vi que ele desenhava distraído da minha presença, absorto, determinado, decidido. Enquanto eu apenas repetia, não entrando na brincadeira do jeito que me foi oferecida. Para comodidade minha, perguntei se poderia copiar o dele, que me parecia já bem definido. Afinal o que eu colocaria no meu caminho, como explicaria aquela brincadeira sem sentido? Imediatamente ele interrompeu o desenho, colocou o lápis sobre a mesa, me olhou e disse bem sério: é claro que não, você não sabe que cada um tem que ter o seu caminho?
Já faz muitos anos e este era o início da minha clínica. Mas nunca mais esqueci aquele menino. Quase sempre penso no pedido que via em seu rosto: que lhe deixassem respirar sozinho. Ao mesmo tempo admiro a sua coragem de se rebelar contra o meu conformismo. É claro que era só uma brincadeira, mas quem disse que ele queria saber disso?
Nas primeiras entrevistas, colocava tudo de cabeça pra baixo, chutava, batia. Aos poucos foi dando vida aos carrinhos que iam pra guerra, as mortes, os bandidos. Seu pai morrera com um choque no liquidificador, quando ele ainda estava na barriga da mãe e este era o drama que envolvia aquela família, composta de mãe e filho.
Sim, vamos, respondi depois de colocar duas folhas de papel, lápis e borracha sobre a mesa, sentando-me em seguida. Vi que ele desenhava distraído da minha presença, absorto, determinado, decidido. Enquanto eu apenas repetia, não entrando na brincadeira do jeito que me foi oferecida. Para comodidade minha, perguntei se poderia copiar o dele, que me parecia já bem definido. Afinal o que eu colocaria no meu caminho, como explicaria aquela brincadeira sem sentido? Imediatamente ele interrompeu o desenho, colocou o lápis sobre a mesa, me olhou e disse bem sério: é claro que não, você não sabe que cada um tem que ter o seu caminho?
Já faz muitos anos e este era o início da minha clínica. Mas nunca mais esqueci aquele menino. Quase sempre penso no pedido que via em seu rosto: que lhe deixassem respirar sozinho. Ao mesmo tempo admiro a sua coragem de se rebelar contra o meu conformismo. É claro que era só uma brincadeira, mas quem disse que ele queria saber disso?
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