segunda-feira, 17 de novembro de 2008

BARCELONA É FEMININA

Fui ver o último filme do Woody Allen e saí do cinema resmungando sozinha. Com tanta coisa interessante acontecendo no mundo, o cineasta velho e caduco continua falando de amor, sexo e orgia. Exibe cinicamente seus pretensiosos clichês antigos, acompanhado de imagens cada vez mais irresistíveis. Desvelando a gasta e rota tragédia da vida com sabor de coisa já vista.

O mal estar começou na entrada do cinema e a constatação do fiel público das tardes de sábado, que envelhecia. Ao meu lado, na última fila, um senhor de meia idade lia concentrado o livro que acabara de comprar, enquanto vez por outra alguém entrava na sala e manifestava uma suspeita euforia, provavelmente ao reencontrar um amigo aposentado que há anos não via. Esposas com sacos de pipoca ou uma amiga de companhia, entravam antes das luzes se apagarem e diminuir o burburinho.

O leitor distraído agora dava atenção à mulher e comentava do livro que tanto queria. As luzes se apagaram e o movimento na tela começa a reivindicar um tipo de concentração intelectual de respiração contida. Nada que aquele público desconhecesse ou já não tivesse imaginado cabível naquele retângulo imprevisto. A familiaridade dos movimentos se reafirma na narrativa, lugar de onde o autor se confunde com a obra, agora de forma invisível. A reação escandalosa do público quase sempre me irrita, não há motivos pra tanto riso.

Duas amigas americanas viajam de férias a Barcelona e tudo acontece em função desta viajem, como a sinopse avisa. Dentro do carro, enquanto viajam distraídas, o diretor vai delineando seus perfis caricatos na terceira pessoa, nos confidenciando as eternas inquietações de um homem excêntrico e exibido. Realçando sua presença incomoda e insistente, num sussurro de voz estridente que avisa todo o tempo quem dirige a película. Seu modo particular de narrar os personagens é como um velho conhecido. Como é conhecida a criteriosa escolha de belas mulheres, unida à uma eterna disposição em discorrer sobre o insolúvel conflito de relações, como drama central da vida. Não importando o lado da narrativa, apenas confirmando a inutilidade de qualquer tentativa.

A arte, com suas cores e energia, corrompe o olhar em direção à cidade escolhida, com destaque para a vida cultural emergente e suas recentes produções artísticas. É verão e Barcelona explode com sua arquitetura exuberante e seus costumes vivos, sendo vista primeiro de cima, da mansão do velho e pálido casal americano que hospeda as duas amigas. Em meio ao jardim florido o previsível casal mantém os traços da terra estrangeira à mesa, servida com todo o requinte. Enquanto comem, bebem e se confidenciam, discutem e interrogam sem nenhum pudor acerca do que é útil e indispensável à vida. E sobre os modos práticos de colocar estas verdades em dia.

Mais tarde, no grande salão de festas de uma exposição, o terceiro personagem da cena desfila pelas quinas, tendo como traço a camisa vermelha e o olhar sedutor, em eterna posição de conquista. As extravagâncias amorosas do galã - um convite inesperado para uma viagem decisiva - constroem um roteiro pouco convincente de triangulação, recheado de velhas e esvaziadas trapaças, grotescamente reproduzidas. Bem ao estilo do diretor, as cenas de sexo são propositalmente mal focadas e quase sempre partidas ao meio, ou interrompidas.

A sensualidade irresistível da mulher espanhola – antes uma citação, mais tarde uma aparição fantasmática de passionalidade incontida - ocupa metade das cenas seguintes, entre o inglês e a resistência da língua nativa. A mulher que retorna sempre em nome da paixão sem medida, interrompe brutalmente nas cenas decisivas, mudando pateticamente o sentido. Sem ser nunca compreendida, não importando nem mesmo a língua. Os excessos do autor desnudam o universo de contradições culturais embutidas por trás de costumes e estereótipos exagerados, com o quais ele se diverte sempre, na pele dos personagens. Especialmente os femininos.

O homem que estava do meu lado levantou-se empolgado enquanto a tela exibia os créditos finais. Woody Allen continua o mesmo, dizia ele em tom de euforia. Levei alguns dias para refletir sobre o que fui fazer ao cinema, além do hábito de pertencer a uma geração que aplaude o desencanto e ainda reconhece nele alguma poesia. Devem ser as ruas desconhecidas de Barcelona, misturada a uma boa dose de melancolia. Ou a mulher que ri sozinha dentro de mim, enquanto acende um cigarro e caminha pensativa. Pobre alma feminina, talvez Barcelona seja uma menina.

segunda-feira, 30 de junho de 2008

A Lapa e a polícia

Por dois dias seguidos visitei a Lapa e em ambos fiquei estarrecida com o que vi ao anoitecer de cada um dos dias. Sabemos que a ação diária da polícia na região é intensa, e sofre mudanças com objetivos específicos. Acabamos nos acostumando com os camburões e as sirenes estacionadas em lugares estratégicos, fazendo parte da habitual paisagem, com sua suposta harmonia e convívio.

Este fim de semana, no entanto, foi diferente. Algumas ações dirigidas apontavam para novas medidas de segurança na região, com as quais passamos a conviver sem aviso. No sábado, conversando distraída com amigos na porta do Circo Voador, estranhei barracas sendo arrastadas por senhoras, velhos e trabalhadores aborrecidos, que se dirigiam amontoadas para um canto debaixo dos arcos.

Sob a escolta de um policial, eles se viam constrangidos a abandonar a rotina de vender livremente suas mercadorias, passando a ser tratados como fora da lei. Estavam fazendo algo proibido. Talvez essa noite alguém não consiga levar pra casa o pão, o leite, ou qualquer outra coisa que o dinheiro compre com trabalho in-digno. Mesmo assim, enquanto todos não foram retirados de em volta da praça, o policial não deu por encerrado o seu serviço. É a lei, pensei, suspirando fundo na minha impotência que se deu por vencida. Não há nada a fazer.

No domingo a cena não apenas se repetia, mudava de lugar e de vítima. Parei numa barraca pra comer um churrasquinho e tomar uma cerveja com um amigo. Enquanto aguardava na fila, nos sentamos numa cadeira de frente pra rua e começamos a observar o que acontecia. A rua estava repleta de mendigos, misturada com moradores locais e gente de fora, que às dez horas da noite ainda circulava nos bares e barraquinhas. De vez em quando era possível encontrar alguém conhecido ou ser abordado por um faminto.

De costas para os arcos, ouvimos o burburinho vindo de trás, que foi se estendendo na nossa direção e seguia, parecendo infinito. Aos poucos nos demos conta de uma nova e inesperada ação da polícia, que expulsava um grupo grande de pessoas de seus alojamentos de improviso. Fiquei assustada ao ver tantas crianças descalças correndo àquela hora da noite, mães adolescentes com bebês no colo, gritos que cresciam enquanto a confusão se estendia. Era a lei, mais uma vez se cumprindo.

A lei que provavelmente quer manter limpa a cidade para o dia seguinte. E à qual nos submetemos, ajudando a esconder pra debaixo do tapete a enorme ferida social, alastrada e sangrenta. Insuportavelmente exposta à nossa vista. A poucos metros um policial chutava um mendigo, enquanto lhe arrancava o cobertor e lhe mandava pra lugar nenhum. Somente cumpria a lei, com seus modos decididos.

A ferida que cresce purulenta em algum beco da cidade, por vezes estoura a olhos nus, rompendo com a ordem estabelecida. Não é preciso ser vítima de uma bala perdida pra ser atravessado no corpo e no cérebro pela existência desse estranho cotidiano, que mata pobres, pretos, velhos, crianças e meretrizes. Mantendo a céu aberto, campos de concentração e práticas genocidas.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

MEU CASO DE AMOR COM O TEATRO

Ontem fui ao teatro depois de muito tempo “entocada”. Na cidade do Rio de Janeiro ir ao teatro é uma aventura sempre perigosa. Mesmo assim não desisto e guardo meu grau de exigência pra alguma surpresa inesperada. Em alguns raros momentos o teatro carioca me surpreendeu de fato.

Isso aconteceu em datas memoráveis. Mesmo que eu inveje os paulistas com o seu SESC da Consolação, mesmo que eu fareje o teatro de Londrina com boas e surpreendentes aparições, mesmo que eu me surpreenda com o que acontece em Brasília, Goiás e outros lugares inimagináveis, o teatro do Rio de Janeiro continua sendo a velha praga.

Não tenho formação teatral, aprendi no tato. Fui batizada e me tornei amante um belo dia, com o Grupo Galpão e sua mais bela apresentação de todos os tempos: Romeu e Julieta. Depois acompanhei Gabriel Vilela em inúmeras montagens. Era um tempo de festa, pelo menos de seis em seis meses um espetáculo que emocionava. Grandes e talentosos atores sendo descobertos, outros conseguindo espaço digno para a sua arte.

Gabriel saiu de cena e depois dele ficou um vácuo. O grupo Armazém apareceu e começou a abrir novos espaços. Fundição Progresso abrigou várias montagens, juntamente com o SESC de Copacabana, CCBB, Planetário. Carlos Gomes, João Caetano. O teatro estava de volta, mas ainda não era nosso, era de fora.

Conheci Moacyr Chaves em “Bugiaria – o processo de João Cointra” e fiquei encantada. De lá pra cá acompanhei alguns de seus espetáculos, na esperança de viver na minha cidade, um novo tempo de boas montagens. Desisti no caminho, Moacyr errou a mão em vários lugares, não vou citar, sou uma leiga apaixonada.

Ontem decidi dar-lhe uma outra chance e fui assistir “A invenção de Morel” de Bioy Casares. Para minha surpresa, os ingressos eram de sobra, o teatro estava vazio e isto me deixou preocupada. Deixei de assistir a Companhia Peter Brook, mas não havia de ser nada. Uma bela teoria da conspiração acerca do comentário de Bárbara Heliodora me deixaria calma, em condições de visitar a exposição da China e não pensar mais no caso.

O folder, muito bonito, como quase tudo que o CCBB realiza, era uma inspiração à parte. Entrei meia hora antes e consegui ler o texto de Vera Novello, que me adoçou a boca e me deu coragem. Trechos de entrevistas com Bioy Casares, bem como um pequeno resumo de sua trajetória em destaque, davam alguma noção do que nos esperava. O corpo de atores, pra quem freqüenta teatro, dispensa comentários. Fiquei novamente animada.

O esforço descomunal dos atores pra dar ao público a chance de assistir a um bom espetáculo, não passou da primeira página. Mesmo esbanjando talento em cena, havia uma postura excessivamente exasperada. Em determinados momentos eu não sabia se assistia a vários monólogos ou se me contentava com um texto despedaçado. O exagero na maquiagem e nos figurinos diante de tantos apelos cênicos, tornava tudo performático. Pra completar um cenário azul espelhado, com grades dos lados, pareciam querer dizer alguma coisa, mas o texto não era tão óbvio.

Os atores voltam em cena para receber os aplausos. No rosto de cada um você percebe o cansaço e a tristeza com a falta de público, com a falta de entusiasmo. Voltei pra casa abatida e fui ouvir Ronda na voz de Jamelão. Tentarei numa outra data.

domingo, 15 de junho de 2008

ADEUS A JAMELÃO

Os discos eram de vinil, em várias rotações, pesavam, quebravam e papai ficava zangado com qualquer arranhão. Eu passava as tardes de banho tomado na sala da antiga casa, ouvindo e aprendendo velhas e populares canções: do brega ao chique, cantava de cor qualquer modinha, especialmente o refrão. Da morte de Pixinguinha, da tristeza de papai e dos discos conservados em homenagem àquele que compôs a mais ouvida das melodias do seu tempo, guardo as notas antigas misturadas às tardes raras, iluminadas pela poesia que escorria dos porões.

As músicas vinham do morro e isto a gente aprendia de travessão. O morro, lugar de vagabundo, de malandro negro safado, era assim que se dizia naquele tempo em que as palavras eram curtas e o medo tomava conta das mentes empobrecidas de informação. Enquanto a poesia brotava e obrigava as casas a abrirem suas portas e janelas praquela euforia de vozes e instrumentos, eu ia gravando os rostos, os nomes... e entre um deles estava Jamelão. Nome da arvore da infância, que a gente subia pra ver a paisagem do alto e contemplar a sujeira do chão. Ou balançar no balanço pendurado em um de seus galhos fortes. Ou simplesmente desfrutar de sua sombra e apreciar seu fruto estranho, cuja arrebentação se misturava ao colorido da terra, numa estranha e permanente visão.

Jamelão, um negro do morro, morre aos 95 anos e eu fui dar o último adeus à minha memória, escondida em tantas vozes e cores de antigamente. Pela primeira vez visitei uma favela, comi sardinha frita trazida do alto, cerveja Skol de garrafa a 2,50, música pra todos os gostos, gente passeando na rua, criança fazendo aniversário, bolo no meio da praça, barulho de tiro. Não liga não, e normal, aqui você se acostuma. Fica tranqüila, dizia o meu anfitrião.

A quadra da Mangueira estava repleta de carros do lado de fora, na porta os caminhões e muitos jornalistas de plantão. Gente dando entrevista, a viúva recepcionando os convidados, o neto elegantemente vestido ao lado do caixão. Orgulho de avô, pensei, fica guardado como uma fotografia de recordação. Um velho que de terno azul marinho e blusa rosa por baixo, chapéu de palha com fita rosa, chegou acompanhado da esposa e da filha, olhou o amigo no caixão de depois se sentou em um canto da quadra.

A viúva, com seu mesmo turbante rosa, sua blusa rosa choque e sua calça verde arregalado, recebia os convidados e dava entrevista pra televisão. Seu rosto de traços fortes misturado à uma elegância natural, davam-lhe uma beleza calculada e preenchida com uma vida diferente das demais. As mulheres naquele lugar são iguais às outras, mas bebem muito mais cerveja e andam pelas ruas sozinhas, participam das rodas de discussão. Essa era a fantasia que permeava o meu olhar curioso, cheio de elucubrações.

Meu amigo me perguntava se estava tudo bem e eu achando desnecessária a pergunta, respondia sempre com uma afirmação. Não foi diferente a vida que eu vivi na minha infância, em casas que eram construídas em frente a enormes valões. Não me assusto com as diferenças, com os becos escuros, com modos e aparências distintas. Ser esquisito pode ser o começo da revolução, pensava enquanto lutava contra as esquisitices que me ensinaram durante a vida e que não combinam com a realidade por alguma outra razão.

A razão que explica a desigualdade, o preconceito e a desinformação foi vivida em forma de deboche por Jamelão. Com seu elastiquinho pendurado na mão, reclamando de cachê pra pagar a conta da luz, viveu sua fama de pão duro que tem ojeriza à escravidão. Lamentou repetidas vezes não ser reconhecido e bem pago, como um dos maiores intérpretes da sua época. Sua morte é anunciada hoje em todos os jornais do mundo, enquanto a favela continua fabricando frutas doces, de cor preta e sabor ácido. Eles nascem, crescem e morrem tingindo as calçadas do mundo com suas cores berrantes, suas vozes, suas canções. Nos ensinando que a diferença produz poesia e aproximação, enquanto a desigualdade continua manchando indiscriminadamente o nosso chão.

domingo, 18 de maio de 2008

Urbanidade

Ontem saí de casa atrasada para um compromisso de trabalho e quando cheguei no ponto do ônibus me dei conta, bastante aflita, de que não tinha o dinheiro trocado para a passagem, apenas cinqüenta reais inteiros. Sempre tenho o cuidado de andar com pratinhas, facilitando o trabalho dos trocadores, especialmente quando eles são ao mesmo tempo motoristas. Não me custa ser gentil, antes de entrar no ônibus eu sempre dou bom dia, esse é um hábito que normalmente facilita as relações, nos humaniza.

Havia uma menina com um bebê no colo e eu sorri para ela assim que entrei, fazia um dia bonito. Retirei a nota de cinqüenta da carteira e disse: desculpe, mas eu não tenho trocado e não tive tempo de passar no jornaleiro, comprar um jornal, uma revista. A trocadora me disse que não tinha troco e eu insisti: e como resolveremos isso? Ela me respondeu secamente: fale com o motorista.O mal humor instalado naquele lugar não se demovia com meus gestos de gentileza e voz macia.

Me aproximei do motorista e disse, com o maior respeito que eu lhe devia: desculpe incomodar seu trabalho, mas é que estou com uma nota de cinqüenta reais e a trocadora não tem troco, será que eu poderia viajar aqui na frente, descerei algumas quadras adiante, na esquina da Bolivar. A essa altura eu vinha do começo de Copacabana e já estava quase na esquina da Siqueira Campos, umas quatro quadras percorridas. Imediatamente ele parou o ônibus e disse que eu deveria descer, que eu não poderia viajar na frente, era proibido.

Surpresa com a reação do motorista, tentei argumentar sobre os meus direitos e voltei para a trocadora, quase enfurecida: eu quero ver a lei que me proíbe de viajar por não ter dinheiro trocado. A trocadora com ar de deboche me dizia, com seu português macarrônico, enquanto eu a corrigia: a gente não podemos, não minha filha, nós não podemos! Estamos entendidas? Eu quero saber o que diz a lei, você sabe me dizer? É claro que ela não sabia, nem eu. E que os demais passageiros já começavam a ficar irritados com a minha insolência e me cobriam de vaias, enquanto eu desistia.

Desci do ônibus e anotei a placa, pensando: vou processar essa porcaria! Dias antes eu havia visto uma cena que me constrangera e me deixara pensativa: uma senhora esbarra em um rapaz e pede desculpas. O rapaz se volta pra ela e diz: sabia que eu posso te processar por isso? Era o vendedor de uma loja e ele estava fazendo uma piada ridícula. Não vou processar ninguém, vou simplesmente escrever um texto e colocar na minha página um desabafo aflito.

Não quero mais discutir os meus direitos, sei que poderia abrir um processo e colocar uma empresa na justiça. Para isso eu precisaria de testemunhas, de uma ocorrência policial, de uma ida à delegacia. Estou sempre atrasada, não tenho tempo para isso. E quanto mais corro, mais me assusto com esta sociedade urbana em que vivo, truculenta, desumana e tão cheia de vícios. Que me obrigam a pensar essas coisas enquanto ando à pé para o meu compromisso. Entre camelôs, moradores de rua e sirenes de polícia.