quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A reinvenção de Caim



A guerra secular entre criador e criatura é o tema retomado por Saramago, com a poesia de um herege que não se intimida com a verdade. A sobrevivência do humano frente à lógica do divino é descontruída pelo personagem Caim, ora Abel, ora inocente, ora culpado. É na desorientação definitiva dos desígnios absolutos do divino que a história cria asas.

Se existe uma palavra solene e pomposa, aparentemente destinada a grandes coisas, quem decide o momento de sua solenidade é o poeta personagem. A palavra, cuja conotação erótica produz a intimidade com a mulher amada, é a mesma que lhe oferece um sinal na testa, uma marca. E que lhe faz seguir errante, sem saber ao certo o final da estrada.

A atemporalidade, como truque do autor, nos faz passear pela história sagrada com uma irreverência inescrupulosa. Recolocando na boca de Caim a escrupulosidade da criatura por Deus condenada. A armadilha que nos priva de outros sentidos é retirada das antigas lendas, cujas frestas o autor escava. É Caim quem salva Isaque da insanidade de Abraão, questiona Deus acerca da destruição de uma cidade, se espanta com a passividade de Jó e por fim, entra na arca e viaja com Noé e sua prole.

O assassinato do irmão e a vida errante, como dono de uma inconfundível e enigmática marca, transformam Caim em um homem inconformado, um outro personagem. Se tudo cabe em um romance, "é curioso", nos diz ele na boca do narrador desconhecido "que as pessoas falem tão ligeiramente do futuro, como se estivesse em seu poder afastá-lo ou aproximá-lo de acordo com as conveniências e necessidades..." No romance de Saramago, é o texto sagrado que sofre mutações imprevisíveis, alterando os planos do Criador e subvertendo a verdade. A criatura reage.

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