Fui ao cinema assistir um filme alemão que haviam me recomendado e acabei entrando na porta errada. Para minha surpresa – eu não havia consultado o jornal, descobri na hora – a primeira produção hollywoodiana de Hersog acabara de entrar em cartaz: o sobrevivente. Não havia dúvidas de que valeria à pena mudar de rota.
Os primeiros cinco minutos do filme não parecem dizer nada, além de um inglês de causar estranheza a quem está acostumado com o cineasta e suas produções alemãs clássicas. Rostos moldados por Hollywood, no entanto, se perdem, quando com eles já se quer alguém acostumado. As tomadas de cena que seguem as primeiras falas, suportam um roteiro cuidadosamente recortado, tal como nos ensina a velha magia de quem sabe o que fazer com as imagens.
O tema seria banal e repetitivo, se não fossem os caminhos percorridos, que não deixam falsas pegadas. Um anti-herói ingênuo e íntegro, não se comunica por meio de ideologias consagradas. Seu sonho de ser aviador é simples, brutal, como a realidade que cerca as conseqüências de um ato que não se pretende arrojado. Perdido na selva vietnamita, preso e torturado, ele procura um sorriso, uma saída, uma fuga, uma cobra de alimento, qualquer coisa que lhe faça continuar vivo, até ser milagrosamente resgatado.
Sua chegada em solo seguro é recebida por uma multidão que o consagra como um herói, a velha piada. Ao ser indagado por repórteres acerca do segredo pra se sobreviver, sem saber o que dizer, declara: é preciso encher o que está vazio e esvaziar o que está cheio. Saí do cinema com essas palavras. Depois de tanto esforço pra suportar cenas duras e impactantes, carregadas de um realismo exacerbado, pensei: então esse era o recado! Apenas uma idéia na cabeça de um homem que desejou ficar vivo, com a intensidade de quem acredita no próprio ato.
Resolvi entender o recado e pensar nas coisas que esvaziaria antes que o ano acabasse, e o que encheria pra continuar viva, acreditando em alguma possibilidade. Esta é a função do cinema: nos fazer criar uma outra realidade. Talvez eu não fique nem mais leve nem mais pesada. Mas certamente sobreviverei, e por enquanto isso me basta.
quarta-feira, 26 de dezembro de 2007
terça-feira, 4 de dezembro de 2007
De quem é o caminho?
Vamos desenhar um caminho? me diz a criança no consultório. Um menino de sete anos de idade, vinha acompanhado da mãe e já na entrada do hospital me causou surpresa o modo como andava: sacudia os braços em círculos no ar, como se abrisse caminho no vento pra conseguir passagem. Já fazia algum tempo que ele vinha e a queixa era feita pela mãe: um menino muito agressivo.
Nas primeiras entrevistas, colocava tudo de cabeça pra baixo, chutava, batia. Aos poucos foi dando vida aos carrinhos que iam pra guerra, as mortes, os bandidos. Seu pai morrera com um choque no liquidificador, quando ele ainda estava na barriga da mãe e este era o drama que envolvia aquela família, composta de mãe e filho.
Sim, vamos, respondi depois de colocar duas folhas de papel, lápis e borracha sobre a mesa, sentando-me em seguida. Vi que ele desenhava distraído da minha presença, absorto, determinado, decidido. Enquanto eu apenas repetia, não entrando na brincadeira do jeito que me foi oferecida. Para comodidade minha, perguntei se poderia copiar o dele, que me parecia já bem definido. Afinal o que eu colocaria no meu caminho, como explicaria aquela brincadeira sem sentido? Imediatamente ele interrompeu o desenho, colocou o lápis sobre a mesa, me olhou e disse bem sério: é claro que não, você não sabe que cada um tem que ter o seu caminho?
Já faz muitos anos e este era o início da minha clínica. Mas nunca mais esqueci aquele menino. Quase sempre penso no pedido que via em seu rosto: que lhe deixassem respirar sozinho. Ao mesmo tempo admiro a sua coragem de se rebelar contra o meu conformismo. É claro que era só uma brincadeira, mas quem disse que ele queria saber disso?
Nas primeiras entrevistas, colocava tudo de cabeça pra baixo, chutava, batia. Aos poucos foi dando vida aos carrinhos que iam pra guerra, as mortes, os bandidos. Seu pai morrera com um choque no liquidificador, quando ele ainda estava na barriga da mãe e este era o drama que envolvia aquela família, composta de mãe e filho.
Sim, vamos, respondi depois de colocar duas folhas de papel, lápis e borracha sobre a mesa, sentando-me em seguida. Vi que ele desenhava distraído da minha presença, absorto, determinado, decidido. Enquanto eu apenas repetia, não entrando na brincadeira do jeito que me foi oferecida. Para comodidade minha, perguntei se poderia copiar o dele, que me parecia já bem definido. Afinal o que eu colocaria no meu caminho, como explicaria aquela brincadeira sem sentido? Imediatamente ele interrompeu o desenho, colocou o lápis sobre a mesa, me olhou e disse bem sério: é claro que não, você não sabe que cada um tem que ter o seu caminho?
Já faz muitos anos e este era o início da minha clínica. Mas nunca mais esqueci aquele menino. Quase sempre penso no pedido que via em seu rosto: que lhe deixassem respirar sozinho. Ao mesmo tempo admiro a sua coragem de se rebelar contra o meu conformismo. É claro que era só uma brincadeira, mas quem disse que ele queria saber disso?
domingo, 30 de setembro de 2007
UMA LIMPEZA NA CIDADE
Numa manhã de terça feira nas ruas de Ipanema, um procedimento de rotina desperta a curiosidade dos transeuntes, que aos poucos se aglomeram em torno de uma cena que se tornou familiar a qualquer morador da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro: a remoção de moradores de rua, executada quase sempre de forma pouco amistosa por policiais da guarda municipal.
Chama a atenção a reação de duas senhoras, completamente histéricas, que incitam a guarda ao recrudescimento, sob a alegação de que a criança ali deitada era um marginal. Elas o reconhecem e garantem ser ele um dos pivetes que as haviam assaltado na semana anterior. A justiça parece cada vez mais fácil de ser executada: uma simples acusação torna uma criança pobre e abandonada alguém indefensável, e isto parece não surpreender mais. Sinto-me humanamente ameaçada com tanta vulnerabilidade.
A criança resiste. Mantém, depois de ter sido levantada aos chutes pelos policiais, a cabeça enterrada no meio das pernas, dentro da camiseta suja e surrada. Tento dialogar com os policiais para entender o que está acontecendo e para onde pretendem levá-lo. Parece que o policial está mais interessado em dialogar com as senhoras e me ignora francamente, enquanto insisto na minha inútil e despropositada abordagem.
Uma última tentativa de reverter a situação fez-se inútil, deixando-me desolada. Coloco-me de cócoras, na altura da criança, e falo-lhe como quem fala a um camarada: ei, o que está acontecendo aqui, você pode me dizer? Estou do seu lado e quero te ajudar. A criança, que não deve ter mais do que dez anos de idade, já não confia mais em ninguém, já não acredita mais em solidariedade. Ignora meus apelos e se mantém muda, de cabeça enterrada.
Me distancio do tumulto e me mantenho alarmada. Minha pergunta nesta manhã de terça-feira é acerca do mundo em que vivo, onde cenas como esta se misturam à paisagem, numa dinâmica perfeitamente adaptada. Uma criança como outra qualquer, demandante de cuidados, vê-se confrontada com um mundo banhado de hostilidade. Sem saída, sem promessa de futuro, sem escola, sem amigos, sem camaradagem, sua figura suja e maltratada se confunde com o lixo que é recolhido nas esquinas da cidade. Marginal, pivete, bandido, a polícia procede a limpeza das ruas, e a vida segue sem grandes novidades.
Chama a atenção a reação de duas senhoras, completamente histéricas, que incitam a guarda ao recrudescimento, sob a alegação de que a criança ali deitada era um marginal. Elas o reconhecem e garantem ser ele um dos pivetes que as haviam assaltado na semana anterior. A justiça parece cada vez mais fácil de ser executada: uma simples acusação torna uma criança pobre e abandonada alguém indefensável, e isto parece não surpreender mais. Sinto-me humanamente ameaçada com tanta vulnerabilidade.
A criança resiste. Mantém, depois de ter sido levantada aos chutes pelos policiais, a cabeça enterrada no meio das pernas, dentro da camiseta suja e surrada. Tento dialogar com os policiais para entender o que está acontecendo e para onde pretendem levá-lo. Parece que o policial está mais interessado em dialogar com as senhoras e me ignora francamente, enquanto insisto na minha inútil e despropositada abordagem.
Uma última tentativa de reverter a situação fez-se inútil, deixando-me desolada. Coloco-me de cócoras, na altura da criança, e falo-lhe como quem fala a um camarada: ei, o que está acontecendo aqui, você pode me dizer? Estou do seu lado e quero te ajudar. A criança, que não deve ter mais do que dez anos de idade, já não confia mais em ninguém, já não acredita mais em solidariedade. Ignora meus apelos e se mantém muda, de cabeça enterrada.
Me distancio do tumulto e me mantenho alarmada. Minha pergunta nesta manhã de terça-feira é acerca do mundo em que vivo, onde cenas como esta se misturam à paisagem, numa dinâmica perfeitamente adaptada. Uma criança como outra qualquer, demandante de cuidados, vê-se confrontada com um mundo banhado de hostilidade. Sem saída, sem promessa de futuro, sem escola, sem amigos, sem camaradagem, sua figura suja e maltratada se confunde com o lixo que é recolhido nas esquinas da cidade. Marginal, pivete, bandido, a polícia procede a limpeza das ruas, e a vida segue sem grandes novidades.
domingo, 5 de agosto de 2007
SOCIEDADE DECAPITADA
Em uma das ruas do Rio - como tantas ruas do Rio - um menino de pés descalços - como tantos meninos de pés descalços – me chamou de tia e me pediu um real. “eu não sou bandido não”, insistiu ele diante das minhas passadas largas, emparelhando seus passos com os meus sem desistir do que queria: apenas um real.
Seu nome é Jonathan, ele tem treze anos e tem um único sapato que guarda pra ir pra escola. Um dia frio e chuvoso, Jonathan anda pelas ruas mal agasalhado, me conta que seu chinelo arrebentou a tira e eu que ele não pode gastar seus sapatos, na escola não posso entrar descalço. Jonathan mora no Morro Dona Marta e quase me convence de que a vida é bela com seu sorriso ingênuo e sua cara de moleque. Eu passaria horas ouvindo suas histórias, seu tom de pedinte tornou ares de narrador e nossas passadas assumiram o mesmo ritmo confidente. É uma pena, digo a ele, mas preciso ir.
Pensei em comprar um chinelo pra Jonathan, mas já era tarde, não haviam lojas abertas naquele pedaço. Não posso dar meu dinheiro do taxi pra ele, vou voltar tarde pra casa. Pensei em dar meu telefone, mas e a coragem de me envolver de verdade? Deixei Jonathan ir embora, com sua moeda reluzente estampada na palma da mão e um monte de projetos na cabeça: vou juntar mais nove dessas e comprar um chinelo pra mim, dizia ele enquanto se afastava.
“Pensamentos e visões de um decapitado” era um texto de Antoine Wiertz citado por Benjamim, que não me saía da cabeça enquanto pensava em Jonathan tentando se mover naquela noite chuvosa, cobrindo as feridas abertas em seu corpo pequeno, frágil e mal alimentado. “O que sofre quem é executado assim não pode ser reproduzido pela linguagem humana”, diz o autor enquanto narra. “Chega um momento em que o executado pensa que está estendendo as mãos crispadas, trêmulas em direção à cabeça. É o instinto que nos faz tapar com a mão a ferida aberta. Isso se dá com o intuito, com o horroroso intuito de recolocar a cabeça em cima do tronco, para guardar mais um pouco de sangue, mais um pouco de vida...”
Quantas mãos ainda se estenderão frente a seus corpos decapitados, iludidas por algum resto de sangue que ainda corre pelas veias de uma cidade atormentada? “Ainda não é a morte”, prossegue a narrativa do decapitado “a cabeça continua pensando e sofrendo”. Talvez a morte em vida que os versos de João Cabral revelam, seja essa morte que nos atravessa como o fio da navalha, produzindo o corte fatal de uma sociedade partida, que inutilmente estende a mão para o que ainda pulsa à sua volta.
“Já está morto e continuará a sofrer assim? Talvez por toda a eternidade?” é a pergunta que me faço acerca de Jonathan e de todas as crianças descalças que pelas ruas perambulam, revelando a face mais cruel dessa navalha. Continuo meu percurso de sempre, quase acostumada ao abandono que me cerca e do qual também faço parte.
Seu nome é Jonathan, ele tem treze anos e tem um único sapato que guarda pra ir pra escola. Um dia frio e chuvoso, Jonathan anda pelas ruas mal agasalhado, me conta que seu chinelo arrebentou a tira e eu que ele não pode gastar seus sapatos, na escola não posso entrar descalço. Jonathan mora no Morro Dona Marta e quase me convence de que a vida é bela com seu sorriso ingênuo e sua cara de moleque. Eu passaria horas ouvindo suas histórias, seu tom de pedinte tornou ares de narrador e nossas passadas assumiram o mesmo ritmo confidente. É uma pena, digo a ele, mas preciso ir.
Pensei em comprar um chinelo pra Jonathan, mas já era tarde, não haviam lojas abertas naquele pedaço. Não posso dar meu dinheiro do taxi pra ele, vou voltar tarde pra casa. Pensei em dar meu telefone, mas e a coragem de me envolver de verdade? Deixei Jonathan ir embora, com sua moeda reluzente estampada na palma da mão e um monte de projetos na cabeça: vou juntar mais nove dessas e comprar um chinelo pra mim, dizia ele enquanto se afastava.
“Pensamentos e visões de um decapitado” era um texto de Antoine Wiertz citado por Benjamim, que não me saía da cabeça enquanto pensava em Jonathan tentando se mover naquela noite chuvosa, cobrindo as feridas abertas em seu corpo pequeno, frágil e mal alimentado. “O que sofre quem é executado assim não pode ser reproduzido pela linguagem humana”, diz o autor enquanto narra. “Chega um momento em que o executado pensa que está estendendo as mãos crispadas, trêmulas em direção à cabeça. É o instinto que nos faz tapar com a mão a ferida aberta. Isso se dá com o intuito, com o horroroso intuito de recolocar a cabeça em cima do tronco, para guardar mais um pouco de sangue, mais um pouco de vida...”
Quantas mãos ainda se estenderão frente a seus corpos decapitados, iludidas por algum resto de sangue que ainda corre pelas veias de uma cidade atormentada? “Ainda não é a morte”, prossegue a narrativa do decapitado “a cabeça continua pensando e sofrendo”. Talvez a morte em vida que os versos de João Cabral revelam, seja essa morte que nos atravessa como o fio da navalha, produzindo o corte fatal de uma sociedade partida, que inutilmente estende a mão para o que ainda pulsa à sua volta.
“Já está morto e continuará a sofrer assim? Talvez por toda a eternidade?” é a pergunta que me faço acerca de Jonathan e de todas as crianças descalças que pelas ruas perambulam, revelando a face mais cruel dessa navalha. Continuo meu percurso de sempre, quase acostumada ao abandono que me cerca e do qual também faço parte.
sexta-feira, 1 de junho de 2007
TANTO FAZ FICAR VIVO?
Acabei de ler "O Estrangeiro" de Albert Camus e no início do relato, aparentemente descomprometido com a realidade à sua volta, pensei: deveria estar lendo sobre coisas mais urgentes, afinal o sofrimento individual quase sempre se apresenta como desinteressante do ponto de vista político social.
O último capítulo do livro é um soco no estômago para quem ainda se ilude com a escrita de Camus. Um homem banal, numa perspectiva banal frente à vida, agindo com base no “tanto faz”, de um instante para o outro se vê diante da morte e desperta para os anos perdidos à sua frente. Seu ateísmo confrontado com a fé do capelão que vem assistí-lo em suas últimas horas de vida resulta em um debate de raríssima beleza, lugar onde a vida e a morte se apresentam com toda a sua poesia e horror.
“Tão perto da morte (...) também eu me sinto pronto para reviver tudo. Como se essa grande cólera me tivesse purificado do mal, esvaziado de esperança, diante dessa noite carregada de sinais e de estrelas, eu me abria pela primeira vez à terna indiferença do mundo.” A eterna indiferença diante da vida, sob a perspectiva da morte, apresenta a sua face de certeza radical. É somente por ser capaz de continuar desejando um mundo melhor, que ele se mantém vivo por mais algumas horas.
Camus nos convida a ter esperanças, enquanto a escrita o mantém vivo em nossa memória, nos causando horror todas as vezes que optamos pelo “tanto faz”. A perspectiva da morte presente em nossa memória de forma radical é o que nos permite a valorização permanente da vida. Não somente da nossa morte, mas de todas as mortes injustas, praticadas por leis injustas. Não podemos nos esquecer um só minuto que o “tanto faz” é o decreto de morte antecipado. Nosso e de todos os que nos cercam.
O último capítulo do livro é um soco no estômago para quem ainda se ilude com a escrita de Camus. Um homem banal, numa perspectiva banal frente à vida, agindo com base no “tanto faz”, de um instante para o outro se vê diante da morte e desperta para os anos perdidos à sua frente. Seu ateísmo confrontado com a fé do capelão que vem assistí-lo em suas últimas horas de vida resulta em um debate de raríssima beleza, lugar onde a vida e a morte se apresentam com toda a sua poesia e horror.
“Tão perto da morte (...) também eu me sinto pronto para reviver tudo. Como se essa grande cólera me tivesse purificado do mal, esvaziado de esperança, diante dessa noite carregada de sinais e de estrelas, eu me abria pela primeira vez à terna indiferença do mundo.” A eterna indiferença diante da vida, sob a perspectiva da morte, apresenta a sua face de certeza radical. É somente por ser capaz de continuar desejando um mundo melhor, que ele se mantém vivo por mais algumas horas.
Camus nos convida a ter esperanças, enquanto a escrita o mantém vivo em nossa memória, nos causando horror todas as vezes que optamos pelo “tanto faz”. A perspectiva da morte presente em nossa memória de forma radical é o que nos permite a valorização permanente da vida. Não somente da nossa morte, mas de todas as mortes injustas, praticadas por leis injustas. Não podemos nos esquecer um só minuto que o “tanto faz” é o decreto de morte antecipado. Nosso e de todos os que nos cercam.
quinta-feira, 31 de maio de 2007
Por uma realidade digna de reflexão
Os amigos e parceiros com os quais me relaciono profissional e socialmente, discutem política e aspiram soluções. Seja numa mesa de bar numa sexta-feira descompromissada, seja em meio a algum embate ideológico de proporções maiores.
O descontentamento com a realidade resulta em discussões acerca dos caminhos possíveis e das soluções cabíveis. Não é mais possível conviver com famílias dormindo nas ruas, crianças vendendo balas de madrugada em mesas de bar, assaltos nos sinais de trânsito, tiroteios nas vias expressas e o que é mais grave, a realidade das favelas e as reais condições em que vivem milhares de famílias neste Rio de Janeiro permeado de contradições.
A princípio queremos todos a mesma coisa: justiça social com a diminuição da desigualdade assustadoramente desproporcional. Os instrumentos capazes de promover esta de mudança parecem claros numa primeira e superficial visão: uma política social de distribuição de renda unido a um projeto educacional que dê ao povo condições de se organizar articuladamente, buscando por meio deste projeto, as possíveis soluções.
Quando partimos para a realidade e verificamos as ações políticas em andamento, por outro lado, percebemos que o que parece simples se complexifica no embate ideológico e nos diferentes níveis de conformação. O clima de descontentamento se vê ratificado por uma imprensa manipuladora, cujas informações são acolhidas com entusiasmo e crença desmedida, emperrando qualquer nível de discussão.
As recentes ações de Hugo Chavez na Venezuela servem como exemplo desta divisão. Se de um lado temos um presidente que não faz nada – não privatiza o setor aéreo, por exemplo – por outro temos um ditador que arbitra o fechamento de um canal de televisão, produzindo, como era de se esperar, reações duras da nossa imprensa marrom.
Que as elites venezuelanas e as demais elites latinas não se conformem com um governo que age em favor do povo, isso não nos causa espanto ou qualquer outro tipo de reação. Mas que o restante da população resolva se unir ao clima de descontentamento expresso por um jornalismo contaminado, cujos interesses são mantidos com base na conivência, isto sim, nos assusta e nos causa profunda indignação.
Não basta desejar uma sociedade melhor, é preciso trabalhar para que ela se organize em melhores condições. Enquanto acharmos que o problema não é nosso e que não nos cabe o trabalho de reflexão e reconhecimento dos engodos a que somos submetidos, passaremos a vida suspirando o nosso voto lançado nas urnas em vão. Como se votar bastasse, como se governar fosse simples, como se o buraco não fosse mais embaixo e a luta não fosse um compromisso diário com a busca da verdade, camuflada por uma persistente e diabólica tentativa de manipulação.
O descontentamento com a realidade resulta em discussões acerca dos caminhos possíveis e das soluções cabíveis. Não é mais possível conviver com famílias dormindo nas ruas, crianças vendendo balas de madrugada em mesas de bar, assaltos nos sinais de trânsito, tiroteios nas vias expressas e o que é mais grave, a realidade das favelas e as reais condições em que vivem milhares de famílias neste Rio de Janeiro permeado de contradições.
A princípio queremos todos a mesma coisa: justiça social com a diminuição da desigualdade assustadoramente desproporcional. Os instrumentos capazes de promover esta de mudança parecem claros numa primeira e superficial visão: uma política social de distribuição de renda unido a um projeto educacional que dê ao povo condições de se organizar articuladamente, buscando por meio deste projeto, as possíveis soluções.
Quando partimos para a realidade e verificamos as ações políticas em andamento, por outro lado, percebemos que o que parece simples se complexifica no embate ideológico e nos diferentes níveis de conformação. O clima de descontentamento se vê ratificado por uma imprensa manipuladora, cujas informações são acolhidas com entusiasmo e crença desmedida, emperrando qualquer nível de discussão.
As recentes ações de Hugo Chavez na Venezuela servem como exemplo desta divisão. Se de um lado temos um presidente que não faz nada – não privatiza o setor aéreo, por exemplo – por outro temos um ditador que arbitra o fechamento de um canal de televisão, produzindo, como era de se esperar, reações duras da nossa imprensa marrom.
Que as elites venezuelanas e as demais elites latinas não se conformem com um governo que age em favor do povo, isso não nos causa espanto ou qualquer outro tipo de reação. Mas que o restante da população resolva se unir ao clima de descontentamento expresso por um jornalismo contaminado, cujos interesses são mantidos com base na conivência, isto sim, nos assusta e nos causa profunda indignação.
Não basta desejar uma sociedade melhor, é preciso trabalhar para que ela se organize em melhores condições. Enquanto acharmos que o problema não é nosso e que não nos cabe o trabalho de reflexão e reconhecimento dos engodos a que somos submetidos, passaremos a vida suspirando o nosso voto lançado nas urnas em vão. Como se votar bastasse, como se governar fosse simples, como se o buraco não fosse mais embaixo e a luta não fosse um compromisso diário com a busca da verdade, camuflada por uma persistente e diabólica tentativa de manipulação.
quarta-feira, 11 de abril de 2007
QUEREMOS PAZ, MAS COM JUSTIÇA SOCIAL
Três jovens da classe média de Brasília foram indiciados ontem por terem planejado, pela internet, segundo a polícia, a morte de um adolescente. A delegada não achou necessário pedir a prisão preventiva dos jovens porque eles estudam, têm endereço fixo e moram com a família.
Enquanto isso, o Jornal do Brasil estampa em uma de suas páginas que 81% da população brasileira defende a redução da maioridade penal. Numa das cartas aos leitores do Globo, uma leitora quer saber até quando vão continuar acontecendo mortes horrendas no asfalto, sem uma ação enérgica por parte das autoridades que faça a violência parar.
As autoridades fazem sim: elas sobem o morro e matam. Matam jovens adolescentes, negros e pobres. Adolescentes que não têm casa, não estudam e não têm família, como os jovens de classe média de Brasília. Tais mortes ainda recebem o apoio da população que diz: é bandido, tem mais é que matar!
Hoje, 500 pessoas saem às ruas para lamentar a morte de João Helio, pedindo paz. Não teremos paz enquanto acharmos que somos nós as maiores vítimas da violência praticada. E que a punição é a solução primeira para o mal estar.
Não teremos paz enquanto comermos tranquilamente o nosso pão, sabendo que milhares precisam mendigar. Não teremos paz enquanto dormirmos sossegadamente debaixo do nosso teto confortável, sabendo que milhares não têm onde morar. Não teremos paz enquanto desfrutarmos da educação e do lazer a que temos acesso, sabendo que milhares não sabem ler nem escrever, milhares não conseguem se articular.
Enquanto a polícia nos protege, milhares ficam desprotegidos, sendo assassinados impunemente todos os dias. E não viram notícias de jornal e nem produzem algum tipo de comoção social. Porque são pretos, pobres e favelados.
Então que sociedade é essa que quer tanto paz? Sem justiça não há como aplacar os ódios e diminuir as desigualdades. Queremos paz sim, mas não uma paz forjada por tablóides sensacionalistas de jornais. Não podemos ter paz enquanto a justiça não se realizar.
Enquanto isso, o Jornal do Brasil estampa em uma de suas páginas que 81% da população brasileira defende a redução da maioridade penal. Numa das cartas aos leitores do Globo, uma leitora quer saber até quando vão continuar acontecendo mortes horrendas no asfalto, sem uma ação enérgica por parte das autoridades que faça a violência parar.
As autoridades fazem sim: elas sobem o morro e matam. Matam jovens adolescentes, negros e pobres. Adolescentes que não têm casa, não estudam e não têm família, como os jovens de classe média de Brasília. Tais mortes ainda recebem o apoio da população que diz: é bandido, tem mais é que matar!
Hoje, 500 pessoas saem às ruas para lamentar a morte de João Helio, pedindo paz. Não teremos paz enquanto acharmos que somos nós as maiores vítimas da violência praticada. E que a punição é a solução primeira para o mal estar.
Não teremos paz enquanto comermos tranquilamente o nosso pão, sabendo que milhares precisam mendigar. Não teremos paz enquanto dormirmos sossegadamente debaixo do nosso teto confortável, sabendo que milhares não têm onde morar. Não teremos paz enquanto desfrutarmos da educação e do lazer a que temos acesso, sabendo que milhares não sabem ler nem escrever, milhares não conseguem se articular.
Enquanto a polícia nos protege, milhares ficam desprotegidos, sendo assassinados impunemente todos os dias. E não viram notícias de jornal e nem produzem algum tipo de comoção social. Porque são pretos, pobres e favelados.
Então que sociedade é essa que quer tanto paz? Sem justiça não há como aplacar os ódios e diminuir as desigualdades. Queremos paz sim, mas não uma paz forjada por tablóides sensacionalistas de jornais. Não podemos ter paz enquanto a justiça não se realizar.
terça-feira, 10 de abril de 2007
O AMOR AO SABER
Recentemente descobri Giordano Bruno (1548-1600) através de um trabalho de levantamento feito por Nuccio Ordine[1], publicado em seu livro “O umbral da sombra”. O pensamento de Giordano apresenta, para a história da filosofia de sua época, uma ruptura radical com todos os moldes canônicos do saber filosófico, bem como o estabelecimento precoce de uma modernidade sobre a qual viríamos a nos debruçar mais tarde.
Um dos capítulos em particular nos chama a atenção para a ruptura que Bruno faz com a linguagem amorosa de sua época, encerrada sobre um mundo de gestos, símbolos, cores, palavras e imagens, como puro entretenimento social, fundado, segundo ele, em moldes pré-fabricados e fórmulas esvaziadas. O que esta forma poética nos oferece é um modelo de conduta pronto a reproduzir gestos e palavras, sem refletir sobre seu conteúdo.
A busca da perfeição no amor é transposta por ele para o amor pelo saber, como uma inexaurível necessidade de possuir aquilo que nunca se pode possuir completamente. A delicada questão da satisfação, que leva à extinção do desejo, é substituída pela busca incessante, capaz de manter a tensão que anima o amante.
O homem heróico, nos diz Bruno, é aquele que vive continuamente no “excesso das contrariedades” tendo a “alma cindida” podendo assim ser capaz de queimar-se nos ardentes desejos. Quem se dispõe a esta aventura amorosa, sabe, desde o início, que o seu amor pelo objeto do desejo jamais se extinguirá. Ao contrário, quanto mais pratica a perseguição, tanto mais ele se inflama, porque se trata de um amor “que mais acende do que pode apagar o desejo.”
A busca do objeto deve assim coincidir com o desejo, só importando o objeto capaz de manter o desejo funcionando. Este objeto, sobre o qual o homem dedica a sua paixão, não poderá completá-lo nem satisfazê-lo completamente, caso contrário, o desejo se extinguirá. O encontro amoroso deverá portanto, garantir tensão, ruptura, para novamente ser capaz de enlaçar.
A caça à sabedoria, como uma busca ardente pelo objeto amado, transforma-se numa viagem solitária, por um caminho espinhoso e deserto. Aquilo que procuramos, não deve estar fora, mas dentro de nós mesmos.
[1] ORDINE, Nuccio. O umbral da sombra. Ed. Perspectiva. São Paulo, 2006.
Um dos capítulos em particular nos chama a atenção para a ruptura que Bruno faz com a linguagem amorosa de sua época, encerrada sobre um mundo de gestos, símbolos, cores, palavras e imagens, como puro entretenimento social, fundado, segundo ele, em moldes pré-fabricados e fórmulas esvaziadas. O que esta forma poética nos oferece é um modelo de conduta pronto a reproduzir gestos e palavras, sem refletir sobre seu conteúdo.
A busca da perfeição no amor é transposta por ele para o amor pelo saber, como uma inexaurível necessidade de possuir aquilo que nunca se pode possuir completamente. A delicada questão da satisfação, que leva à extinção do desejo, é substituída pela busca incessante, capaz de manter a tensão que anima o amante.
O homem heróico, nos diz Bruno, é aquele que vive continuamente no “excesso das contrariedades” tendo a “alma cindida” podendo assim ser capaz de queimar-se nos ardentes desejos. Quem se dispõe a esta aventura amorosa, sabe, desde o início, que o seu amor pelo objeto do desejo jamais se extinguirá. Ao contrário, quanto mais pratica a perseguição, tanto mais ele se inflama, porque se trata de um amor “que mais acende do que pode apagar o desejo.”
A busca do objeto deve assim coincidir com o desejo, só importando o objeto capaz de manter o desejo funcionando. Este objeto, sobre o qual o homem dedica a sua paixão, não poderá completá-lo nem satisfazê-lo completamente, caso contrário, o desejo se extinguirá. O encontro amoroso deverá portanto, garantir tensão, ruptura, para novamente ser capaz de enlaçar.
A caça à sabedoria, como uma busca ardente pelo objeto amado, transforma-se numa viagem solitária, por um caminho espinhoso e deserto. Aquilo que procuramos, não deve estar fora, mas dentro de nós mesmos.
[1] ORDINE, Nuccio. O umbral da sombra. Ed. Perspectiva. São Paulo, 2006.
segunda-feira, 9 de abril de 2007
SARABAND, um Bergman que não quer calar
Ainda poder contar com produções recentes de Bergman é um privilégio que a nossa geração não pode dispensar. Ainda assim, SARABAND, o último filme do maior cineasta vivo (2003) não fez parte do circuito carioca de cinemas, o que nos leva a pensar no que há de errado com a arte, em especial o cinema.
Bergman não é um autor fácil, disso nós já sabemos. Sua arte não é apaziguadora, ao contrário, nos desestabiliza e nos inquieta o olhar. Em SARABAND essa inquietação é mais grave, se pensarmos no amadurecimento do autor e na velhice com suas conseqüências reais. A amargura que sofre o personagem, diante das limitações da vida e das frustrações das quais não pode mais escapar, é o que move os 112 minutos de película densa e dura, recheada de uma melancolia poética que nos comove do início ao fim.
Trinta anos após o divórcio, Marianne (Liv Ullmann) decide visitar Johan (Erland Josephson) no isolado mundo que escolheu pra viver os últimos dias de sua vida. O encontro, que a princípio parecia sem proósito, tem conseqüências na vida dos dois, e na vida daqueles que os cercam: filhos e netos.
O que fica mais evidente é o modo distinto como envelheceram. A amargura e a solidão que tomam conta de Johan são do tamanho de uma ferida aberta, para a qual ele já desistiu de encontrar a cura. Marianne, contudo, ainda quer dar algum sentido pra o seu passado, buscando respostas pra coisas que não pôde dar.
Ela não sabe ao certo o que a faz procurá-lo, mas durante o tempo em que está ao seu lado, tenta compreender o que aconteceu a ambos, o que significou ter amado aquele homem, o que significa amar. Johan lhe diz que para que um casamento dê certo, duas coisas precisam existir: uma amizade sólida e uma atração sexual inabalável. E conclui: nós fomos dois grandes amigos.
É como amiga que ela se aproxima da sua vida e tenta participar dos seus dramas pessoais. Conhece seu filho com quem ele tem uma relação conturbada, e cuja recente viuvez o torna definitivamente infeliz. Johan não entende como uma mulher conseguiu amar seu filho, cuja manifestação de afeto a ele dirigida ele considera excessiva e enojante.
Marianne, ao ouvir isso, contem-se para não chorar.
Joahn chora pelo filho, se dá conta da vida triste e inútil que viveu. Uma angústia insuportável lhe acomete a ponto de implorar a Marianne que durma do seu lado. Como pretexto, pede que ela tire a roupa e deitam os dois nus, lado a lado. Ele quer saber quando ela vai embora, mas em nenhum momento lhe pede pra ficar.
Marianne retorna e nos dá notícias de Johan meses depois. Ele agora não pode mais atender ao telefone, prometeu que me escreveria. Nunca escreveu. Voltou ao seu isolamento voluntário.
Mas alguma coisa ela recolheu da experiência de descobrir-se só do lado de um homem que nunca soube amar. Numa visita a uma das filhas que ela tinha com Johan, cuja doença mental a afastava da mãe a cada encontro, ela se surpreende com um olhar. Depois de anos, ela me reconheceu. Pela primeira vez eu pude olhar para a minha filha, é o que ela apreende desse encontro com o homem que, durante toda a sua vida, lhe roubou a esperança de ser olhada.
Bergman não é um autor fácil, disso nós já sabemos. Sua arte não é apaziguadora, ao contrário, nos desestabiliza e nos inquieta o olhar. Em SARABAND essa inquietação é mais grave, se pensarmos no amadurecimento do autor e na velhice com suas conseqüências reais. A amargura que sofre o personagem, diante das limitações da vida e das frustrações das quais não pode mais escapar, é o que move os 112 minutos de película densa e dura, recheada de uma melancolia poética que nos comove do início ao fim.
Trinta anos após o divórcio, Marianne (Liv Ullmann) decide visitar Johan (Erland Josephson) no isolado mundo que escolheu pra viver os últimos dias de sua vida. O encontro, que a princípio parecia sem proósito, tem conseqüências na vida dos dois, e na vida daqueles que os cercam: filhos e netos.
O que fica mais evidente é o modo distinto como envelheceram. A amargura e a solidão que tomam conta de Johan são do tamanho de uma ferida aberta, para a qual ele já desistiu de encontrar a cura. Marianne, contudo, ainda quer dar algum sentido pra o seu passado, buscando respostas pra coisas que não pôde dar.
Ela não sabe ao certo o que a faz procurá-lo, mas durante o tempo em que está ao seu lado, tenta compreender o que aconteceu a ambos, o que significou ter amado aquele homem, o que significa amar. Johan lhe diz que para que um casamento dê certo, duas coisas precisam existir: uma amizade sólida e uma atração sexual inabalável. E conclui: nós fomos dois grandes amigos.
É como amiga que ela se aproxima da sua vida e tenta participar dos seus dramas pessoais. Conhece seu filho com quem ele tem uma relação conturbada, e cuja recente viuvez o torna definitivamente infeliz. Johan não entende como uma mulher conseguiu amar seu filho, cuja manifestação de afeto a ele dirigida ele considera excessiva e enojante.
Marianne, ao ouvir isso, contem-se para não chorar.
Joahn chora pelo filho, se dá conta da vida triste e inútil que viveu. Uma angústia insuportável lhe acomete a ponto de implorar a Marianne que durma do seu lado. Como pretexto, pede que ela tire a roupa e deitam os dois nus, lado a lado. Ele quer saber quando ela vai embora, mas em nenhum momento lhe pede pra ficar.
Marianne retorna e nos dá notícias de Johan meses depois. Ele agora não pode mais atender ao telefone, prometeu que me escreveria. Nunca escreveu. Voltou ao seu isolamento voluntário.
Mas alguma coisa ela recolheu da experiência de descobrir-se só do lado de um homem que nunca soube amar. Numa visita a uma das filhas que ela tinha com Johan, cuja doença mental a afastava da mãe a cada encontro, ela se surpreende com um olhar. Depois de anos, ela me reconheceu. Pela primeira vez eu pude olhar para a minha filha, é o que ela apreende desse encontro com o homem que, durante toda a sua vida, lhe roubou a esperança de ser olhada.
A REVOLUÇÃO NÃO SERÁ TELEVISIONADA
As marcas da infância, com seus traços traumáticos, marcam os caminhos pelos quais escrevemos a nossa história, com base em algum desejo que se mantém latente, contraditório, apontando para a falta que não quer sarar.
A imagem mnêmica, que a história transforma em coisa sua, possui em si um índice misterioso, que nos impele a um tipo de redenção, algum ponto do qual não é mais possível escapar. Vozes que escutamos, cenas que guardamos na memória, trazem um certo encontro marcado de gerações, lugar onde o passado dirige um apelo que não pode ser rejeitado impunemente.
Reconhecemos no filme “A revolução não será televisionada", uma parte da história identificada na cena traumática descrita por Hugo Chavez. Não é por acaso que esta cena marca um dos momentos mais emocionantes do documentário, valendo à pena recordar. Sua avó, nos conta Chavez, quando queria insultar a filha, sua mãe, dizia que ela era igual ao seu avô, um assassino, um homem mau, um bárbaro. O neto guardou da memória aquela cena e no coração uma angustia enorme da qual não sabia como escapar.
A narrativa, não importa se grandiosa ou pequena, mas lindamente documentada pelos cineastas, nos faz levar em conta a verdade que um dia aconteceu e não pode ser perdida pela história. E que Chavez tão poeticamente, nos ensina que é preciso resgatar.Para apropriar-se do seu passado, cada momento vivido transforma-se numa citação. É assim que Chavez, a figura central do documentário dispõe-se a redimir o seu passado, indo ao encontro da sua história citada, até deparar-se com os fatos em outra versão possível de compartilhar: um avô revolucionário, homem amaldiçoado que, aos dezessete anos, já pertencia ao grupo bolivariano pela fundação de uma república venezuelana. A partir de então, inspirado na figura do destemido soldado, decide ele mesmo ser parte desta história que continuava a se contar.
A luta, a confiança, a coragem, o humor, a astúcia, a firmeza com que Chavez age em nome da revolução, permitem que a verdade não escape. A história, articulada ao passado, não representa o fato como ele exatamente foi, mas a apropriação possível de alguma reminiscência capaz de manter viva a história da qual se quer participar. Reconhecendo o perigo de entregar-se ao conformismo do discurso dominante, arraigado à tradição e ao conforto, Chavez luta por preservar a verdade dos fatos. Dedica, deste modo, a sua vida à uma causa em particular: salvar a República construída com o sangue de seus antepassados, ameaçada pela globalização, com seus moldes dominantes, cujo propósito é o de destruir e massacrar.
Também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer, é a este temor que a luta de Chavez nos faz despertar. O povo oprimido que desce as ruas para protestar contra o golpe, ensina-nos que a consciência política de um povo não é utopia de loucos, podendo transformar-se em realidade exemplar. A consciência que faz explodir a continuidade da história marca um novo calendário, instante em que a Revolução não é mais um sonho do passado, mas uma luta que se renova a cada dia, a cada despertar. "Queremos Chavez, nós os elegemos e ele deve governar".
Em uma das cenas finais, Chavez de volta ao poder abraça um de seus ministros emocionado: "vocês fizeram a história". Não uma história pontuada de nexos causais, mas uma história capaz de captar a configuração dos fatos, reconhecendo em sua própria época alguma coisa que já estava lá, perfeitamente determinada: a revolução, que não pode e não deve parar. O tempo da rememoração não se dá como um vazio que desencanta o futuro, mas como uma porta estreita por onde se vislumbram os sonhos possíveis de se realizar.
A imagem mnêmica, que a história transforma em coisa sua, possui em si um índice misterioso, que nos impele a um tipo de redenção, algum ponto do qual não é mais possível escapar. Vozes que escutamos, cenas que guardamos na memória, trazem um certo encontro marcado de gerações, lugar onde o passado dirige um apelo que não pode ser rejeitado impunemente.
Reconhecemos no filme “A revolução não será televisionada", uma parte da história identificada na cena traumática descrita por Hugo Chavez. Não é por acaso que esta cena marca um dos momentos mais emocionantes do documentário, valendo à pena recordar. Sua avó, nos conta Chavez, quando queria insultar a filha, sua mãe, dizia que ela era igual ao seu avô, um assassino, um homem mau, um bárbaro. O neto guardou da memória aquela cena e no coração uma angustia enorme da qual não sabia como escapar.
A narrativa, não importa se grandiosa ou pequena, mas lindamente documentada pelos cineastas, nos faz levar em conta a verdade que um dia aconteceu e não pode ser perdida pela história. E que Chavez tão poeticamente, nos ensina que é preciso resgatar.Para apropriar-se do seu passado, cada momento vivido transforma-se numa citação. É assim que Chavez, a figura central do documentário dispõe-se a redimir o seu passado, indo ao encontro da sua história citada, até deparar-se com os fatos em outra versão possível de compartilhar: um avô revolucionário, homem amaldiçoado que, aos dezessete anos, já pertencia ao grupo bolivariano pela fundação de uma república venezuelana. A partir de então, inspirado na figura do destemido soldado, decide ele mesmo ser parte desta história que continuava a se contar.
A luta, a confiança, a coragem, o humor, a astúcia, a firmeza com que Chavez age em nome da revolução, permitem que a verdade não escape. A história, articulada ao passado, não representa o fato como ele exatamente foi, mas a apropriação possível de alguma reminiscência capaz de manter viva a história da qual se quer participar. Reconhecendo o perigo de entregar-se ao conformismo do discurso dominante, arraigado à tradição e ao conforto, Chavez luta por preservar a verdade dos fatos. Dedica, deste modo, a sua vida à uma causa em particular: salvar a República construída com o sangue de seus antepassados, ameaçada pela globalização, com seus moldes dominantes, cujo propósito é o de destruir e massacrar.
Também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer, é a este temor que a luta de Chavez nos faz despertar. O povo oprimido que desce as ruas para protestar contra o golpe, ensina-nos que a consciência política de um povo não é utopia de loucos, podendo transformar-se em realidade exemplar. A consciência que faz explodir a continuidade da história marca um novo calendário, instante em que a Revolução não é mais um sonho do passado, mas uma luta que se renova a cada dia, a cada despertar. "Queremos Chavez, nós os elegemos e ele deve governar".
Em uma das cenas finais, Chavez de volta ao poder abraça um de seus ministros emocionado: "vocês fizeram a história". Não uma história pontuada de nexos causais, mas uma história capaz de captar a configuração dos fatos, reconhecendo em sua própria época alguma coisa que já estava lá, perfeitamente determinada: a revolução, que não pode e não deve parar. O tempo da rememoração não se dá como um vazio que desencanta o futuro, mas como uma porta estreita por onde se vislumbram os sonhos possíveis de se realizar.
domingo, 8 de abril de 2007
Não tenho muita intimidade com computadores, sou avessa à toda essa tecnologia, mas meu frenesi pela escrita me atiçou os miolos, quando um amigo me sugeriu: faça o seu blog!
Então decidi que ia me dedicar ao exercício prazeroso de documentar em palavras as coisas pelas quais sou atravessada: meu amor pelos livros, filmes, peças de teatro, e tudo o mais que me tira o sono, me inquieta o olhar e me faz sonhar.
Essa é a minha primeira viagem oficial pelo mundo da escrita descomprometida, na qual me reconheço e me estranho. A reação de quem lê é o desafio diário que enfrentarei com pânico contido.
Então decidi que ia me dedicar ao exercício prazeroso de documentar em palavras as coisas pelas quais sou atravessada: meu amor pelos livros, filmes, peças de teatro, e tudo o mais que me tira o sono, me inquieta o olhar e me faz sonhar.
Essa é a minha primeira viagem oficial pelo mundo da escrita descomprometida, na qual me reconheço e me estranho. A reação de quem lê é o desafio diário que enfrentarei com pânico contido.
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